No aniversário de Carolina, uma homenagem da historiadora Eliana Garcia Vilas Boas
“Não digam que fui rebotalho,
que vivi à margem da vida.
Digam que eu procurava trabalho,
mas fui sempre preterida.
Digam ao povo brasileiro
que meu sonho era ser escritora,
mas eu não tinha dinheiro
para pagar uma editora.”
Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo, 1960.
Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento, interior de Minas Gerais, em 14 de março de 1914, sendo filha de João Cândido e Maria Carolina de Jesus. Na cidade ela estudou até o segundo ano primário, no Colégio Allan Kardec, o primeiro colégio espírita do Brasil, fundado em 31 de janeiro de 1907 por Eurípedes Barsanulfo. Seu acesso à escola só foi possível porque sua mãe lavava roupa na casa de Dona Maria Leite, que insistiu para que Carolina fosse alfabetizada e custeou todas as despesas com livros e roupas no colégio.
Em 1914, Sacramento era ainda uma pequena cidade em desenvolvimento, a economia era baseada na pecuária e na agricultura, tendo uma expressiva produção cafeeira. Nesse período a maioria da população morava na zona rural. Na área urbana, os menos favorecidos levavam uma vida de muito sacrifício; “os pobres viviam em casas insalubres, em terrenos da Câmara Municipal; a água era escassa; e mesmo furando um poço as pessoas tinham de andar a pé para carregar água. A família de Carolina morava em um terreno que seu avô, Benedito José da Silva, havia comprado. A casa era coberta de sapé, as paredes eram de adobe e o chão de terra batida” (JESUS, 2007, pág. 07).
Em Sacramento, Carolina foi vítima de muitas injustiças e de preconceito. Foi presa junto com sua mãe, acusadas injustamente de roubar um padre; mais tarde Carolina foi presa novamente, desta vez acusada de feitiçaria por estar lendo um dicionário que policiais tomaram pelo livro de São Cipriano.
Mais tarde, em busca de melhores condições de vida e a procura de tratamento para umas feridas que tinha nas pernas, Carolina percorreu o interior dos Estados de Minas Gerais e São Paulo, hora com sua família hora sozinha. Geralmente, enquanto sua mãe trabalhava na colheita do café, ela trabalhava como pajem de criança ou como doméstica. Nas horas vagas, tinha o hábito de ler livros.
Por volta de 1930, São Paulo era inquestionavelmente vista como a cidade da indústria e do progresso; consequentemente como a cidade dos bons empregos. Imbuída por essa “falsa percepção”, forjada no imaginário social da época, Carolina também acreditava que a metrópole seria o lugar apropriado para as pessoas em condições financeiras desfavoráveis. Portanto, em busca de uma vida melhor e em luta constante pelo seu direito à cidadania, no ano de 1937, após a morte de sua mãe, Carolina deixa a cidade de Franca (SP), acompanhando sua patroa, e se muda para São Paulo, a fim de trabalhar como doméstica. Mas, por ser dona de uma personalidade forte e dotada de consciência da sua condição na sociedade, ela não se adequou à profissão.
Desempregada, Carolina se mudou em 1948 para a Favela do Canindé, às margens do Rio Tietê, e passou a ser catadora de materiais recicláveis. Nessa atividade, Carolina administrava seu próprio tempo e, nas horas vagas, escrevia poemas, contos, peças teatrais, romances, provérbios, diários pessoais, além de compor músicas. Sua escrita é um testemunho autobiográfico de fundamental importância, pois representa a percepção da escritora em relação às problemáticas sociais, culturais e políticas, tais como as precárias condições de vida na favela, a violência contra a mulher, o preconceito racial, a desigualdade social, o machismo e as deficiências do sistema democrático, assim como inúmeras reflexões em relação às políticas públicas.
Carolina tinha consciência do seu potencial literário; constantemente procurava editoras para que pudesse publicar seus escritos. Antes de ser revelada ao público, ela já havia tentado chamar a atenção de editores nacionais e internacionais, chegou até a encaminhar alguns cadernos para uma editora nos Estados Unidos, mas o material foi devolvido. Ela era uma leitora assídua de jornais e livros. “Eu fui criada no mundo, sem orientação materna. Mas os livros guiaram os meus pensamentos, evitando os abismos que encontramos na vida. Benditas as horas que passei lendo. Cheguei à conclusão que é o pobre quem deve ler; porque o livro é a bússola que há de orientar o homem no porvir" (JESUS, 1996, p. 167).
Somente em abril de 1958, o jornalista Audálio Dantas, designado pelo jornal Folha da Noite para fazer uma reportagem sobre a realidade da favela do Canindé, conheceu Carolina e soube dos seus escritos. Em meio à múltipla produção literária encontrada, o jornalista interessou-se apenas pelos diários. Entusiasmado com a riqueza dos detalhes narrados sobre o cotidiano, Audálio Dantas prometeu a Carolina que ia viabilizar a publicação de um livro. Antes, porém, o jornalista programou uma série de reportagens para apresentar os escritos de Carolina, sendo que a primeira matéria saiu no dia 19 de maio de 1958, no jornal “Folha da Noite”; e a segunda saiu em 1959, em “O Cruzeiro”, a revista de maior circulação na época.
Em 1960, Carolina Maria de Jesus experimentou fama imediata com a publicação de seu primeiro livro: “Quarto de Despejo – o diário de uma favelada”. A grande repercussão ocorreu principalmente porque o livro retratava as condições de vida dos menos favorecidos. O fato de tratar-se de um relato baseado em testemunho foi de fundamental importância para o sucesso da publicação. Na favela do Canindé, “Carolina era a porta voz da comunidade marginalizada e sem direito à voz” (CASTRO, MACHADO, 2OO7, p. 48). Com a repercussão da obra, as precárias condições de vida dos moradores das favelas passaram a fazer parte da agenda política; e Carolina parecia estar finalmente exercendo o direito de cidadania pelo qual sempre lutou.
Em 1961, Carolina publicou “Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada”; agora a escritora falava sobre a vida da nova classe social com a qual passou a conviver; fato que não agradou muito aos veículos de comunicação. Carolina também é autora de “Pedaços da Fome” e “Provérbios” (1963). Nesse momento sua relação com o jornalista Audálio Dantas já estava estremecida, porque a escritora tinha preferência por outros gêneros literários, enquanto o jornalista insistia na escrita de diários. O livro Pedaços da Fome apresentou um sentimentalismo romântico, e foi prefaciado pelo poeta Eduardo de Oliveira. “O romance narra a vida de Maria Clara e Paulo que vivem em um cortiço com os 06 filhos que tiveram; em um quarto pequeno e sob condições insalubres. O banheiro, o tanque e o poço d’água eram coletivos. Provérbios é um livro com frases moralistas e elementares”: “Quando um governo deixa o custo de vida oprimir o seu povo, ele deixou de ser um governo concreto para ser um governo abstrato” (JESUS, 1963, 20). Além dos livros publicados, ela também lançou, em 1961, um disco onde canta suas próprias composições.
Em 1982, é lançado o “Journal de Bitita”, livro póstumo, de memórias, publicado na França e, no Brasil, pela Editora Nova Fronteira, em 1986, sob o título “Diário de Bitita”. Este livro resulta da divulgação de dois cadernos de manuscritos autobiográficos entregues por Carolina, em 1975, às jornalistas francesas Clélia Pisa e Maryvonne Lapouge, que vieram ao Brasil para entrevistar mulheres de destaque. De um grupo de vinte e seis mulheres selecionadas, Carolina era a única negra.
Com a publicação do livro Quarto de Despejo os escritos de Carolina Maria de Jesus ficaram conhecidos internacionalmente: a obra percorreu mais de 40 países e foi publicada em 14 idiomas; o sucesso se deu porque pela primeira vez na história um morador da favela contava sobre as suas próprias condições de vida. Sua escrita se apresentou como uma forma de resistência e denúncia dos abusos sociais aos quais os pobres eram cotidianamente submetidos. Apesar da repercussão da sua primeira obra, Carolina não recebeu, em vida, toda a atenção que merecia como escritora.
Seguindo a lógica cruel que muitas vezes acompanha a carreira de artistas e escritores, Carolina só conheceu a glória póstuma: sua obra hoje se tornou referência nos Estados Unidos; no Brasil Quarto de Despejo é, hoje, leitura obrigatória no vestibular de várias universidades de porte, tais como a UNICAMP, A UFRGS E A UFMG. Grupos feministas e “coletivos” se inspiram na escritora a fim de discutir e solucionar seus próprios problemas promovendo a mulher, como fazem o “Coletivo Carolinas de Mulheres Negras”, na Bahia, e o “Carolinas”, no Rio de Janeiro. Do ponto de vista artístico, a vida e a obra de Carolina têm sido tema de filmes, peças teatrais e composições musicais. Em 25 de fevereiro de 2021, Carolina Maria de Jesus recebeu como homenagem póstuma o título de doutora Honoris Causa da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A memória de Carolina permanece viva e sua escrita ainda representa a vida cotidiana de muitos brasileiros em situação de vulnerabilidade social: "Escrevo [sobre] a miséria e a vida infausta dos favelados. Eu era revoltada, não acreditava em ninguém. Odiava os políticos e os patrões, porque o meu sonho era escrever e o pobre não pode ter ideal nobre".
Ao falecer em 1977, Carolina Maria de Jesus nos deixou um precioso acervo arquivístico contendo cadernos autógrafos com diários, romances, peças teatrais, contos, textos curtos, provérbios, poemas, quadras, prólogo e narrativas autobiográficas. Maioria desse acervo ainda se encontram inédito e os originais estão no Arquivo Público Municipal de Sacramento.
Referências:
Jesus, Carolina Maria de. Quarto de despejo – Diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1960.
__. Meu estranho diário. São Paulo: Xamã, 1996. (org. Meihy, José Carlos Sebe Bom).
__. Diário de Bitita. 2ª ed. Sacramento (MG): Bertolucci, 2007.
___. Casa de alvenaria – Diário de uma ex-favelada. São Paulo: Francisco Alves, 1961.
___. Pedaços da fome. São Paulo: Aquila, 1963.
___. Provérbios. São Paulo: Luzes, 1963
Sobre a autora
Eliana Garcia Vilas Boas é formada em História pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM) e Pós-Graduada em Gestão e Conservação do Patrimônio Cultural das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ). É Gestora Cultural, e atualmente trabalha na Secretaria de Cultura da cidade de Sacramento. É também membro da Associação feminista Coletivo Bitita, da Associação Companhia Movimento Cênico, fundadora da Embaixada Politize Sacramento e redatora no projeto “Sacramento: Cultura, História, Patrimônio, Conhecimento e Arte”. A profissional já atuou como pesquisadora em vários projetos, entre eles: “Vida por escrito: organização, classificação e preparação do inventário da obra de Carolina Maria de Jesus" e na exposição “Um Brasil para os Brasileiros”, realizada pelo Instituto Moreira Salles - SP. Fonte Texto: Eliana Garcia |
A Associação Companhia Movimento Cênico é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos, fundada em 29 de janeiro de 2011
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